Carta de Duas Barras, Ano Novo, 2007

A experiência da natureza destas matas e das histórias vividas nesta casa traz o sabor da imensa fragilidade, transitoriedade, fugacidade do humano. A consciência acontece por uma combinação de condições e os seres humanos somos neste lugar seu suporte biológico. Criamos e recriamos mundos subjetivos e objetivos. Apegados às nossas construções, nossas crias, vivemos no mundo flutuante das ilusões. Tudo bem, “o absoluto encaixa-se no relativo como uma caixa se encaixa com sua tampa.” Caixa e tampa se interdefinem, inter-são. Despertar, existir como questão, como mistério, não como solução. Soluções são grandes brincadeiras, nesse mundo de jogos que construímos, fazendo e desfazendo regras que usamos para sofrer e fazer sofrer. Despertar, momento fugaz de atenção e consciência plena, nesse deslizar delicado entre inspiração e expiração, nascimento e morte.

Neurose, apego às expectativas sobre o si-mesmo e o si-outro. Crença em um si-mesmo e em um si-outro. Raiva e melancolia pela consciência que é consciência da vida e morte do si-mesmo e do si-outro, momento dessa consciência personificado em nomes, construções históricas... defesas construídas para preservar no mus-eu a história dos apegos, dos nojos, quadros que são pendurados na exposição ou guardados na reserva técnica ao gosto do diretor da ocasião...

A prática acontece no dia-a-dia. Acordar com a respiração, companheira arisca, sabendo do valor inestimável de cada momento vivo. Abrir mão da utopia da eternidade, tratar com compaixão este corpo e sua rede bio-psico-social, prestar atenção à arrogância que nos faz sorrir com desprezo mesquinho ao nos depararmos com as manifestações daquilo que chamamos de burrices, preconceitos, manias, maluquices e defeitos em geral – quando percebidos nos companheiros de estada neste mundo – e que chamamos de nossa personalidade, nosso “jeito de ser”, quando percebidos nesse si-mesmo que cultivamos com tanto empenho, ciosos do que julgamos ser nossa propriedade inalienável mesmo no suposto além-túmulo.

A consciência do vazio do si-mesmo, do vazio das noções de samsara e nirvana, se não estiver associada à compaixão, a uma ternura carinhosa pelas manifestações tão fugazes da vida, não passa de uma arrogância raivosa e agressiva, uma misantropia disfarçada de intelectualidade genial, um simulacro pobre da Mente Não Nascida. E aí, aquilo que é doença, doença do zen, termo que ouvi pela primeira vez do Mestre Tokuda, uma neurose do mais alto gabarito, é pavoneada como marca de sabedoria e sensatez acima do comum dos mortais. Viver nesse mundo de “iluminação” é frio, é de um vazio niilista, é de uma melancolia, tristeza e raiva quase incuráveis. Quem vive assim, nos raros momentos em que se permite uma piscadela de atenção plena, tem um vislumbre dessa realidade, mas tem dificuldade em se separar desse eu tão brilhante, inteligente, genial... torna-se eremita só do lado de fora, não interiormente pela solidão da prática, mas só exteriormente, constantemente acompanhado pelo medo, medo da agressividade que sente despertada pelo outro ou projetada no outro.

O ciclo vicioso só se interrompe pela náusea do samsara, quando o sofredor se enche de sofrer e de brincar de gato e rato com o sofrimento e começa a se estudar com sinceridade.
O zen é muito perigoso. Atrai a nós que nos “achamos”, nós tão especiais, os que desprezamos os tolos, os devocionais, os assim chamados alienados, enfim, todos os que não percebem as coisas como nós seres especialmente arrogantes percebemos. Acabamos formando grupos de prática em que um bando de orgulhosos conseguem se sentar de frente para uma parede durante quarenta minutos umas duas vezes por semana (se tanto...) e se autodenominam praticantes... Ou mesmo sem sequer sentar resolvem construir instituições, monumentos a uma prática de rituais e exterioridades várias, frequentemente alvos de disputas escolásticas, litúrgicas, legais, cenários de excomunhões e debates de autenticidade, concursos de credenciais e certificados de transmissão. Depois se seguem atividades de conversão e os diversos sofrimentos que as acompanham.

A prática de atenção plena é cotidiana. Inclui prestar atenção a cada momento dentro de nossas possibilidades atuais, de maneira leve e lúdica para não assustar o passarinho da vida, ter um leve sorriso carinhoso para as manifestações mais mesquinhas do si-mesmo e do si-outro, ter disciplina para construir na sua vida seu próprio zendô, ajudar delicadamente e a pedido os outros seres a praticar, criando uma percepção da Sangha que inclui todos os seres sencientes. Organizações formais, mosteiros, templos, são construções que vão exibir as características do grupo de prática. Na prática do Dharma, periodicamente acontecem “faxinas” limpando os excessos institucionais que nossos eus adoram construir. O surgimento do Mahayana, por volta do século I d.C. , que podemos reconhecer em Nagarjuna, o Zen de Bodhidharma, por volta do século VI d.C. e a crítica vigorosa de Shantideva, no século VIII, Rinzai e T’sao T’ung na China (não sei bem das datas...), Dogen e Shinran no Japão do século XIII, Bankei no século XVII, Shunryu Suzuki nos EUA, Thich Nhat Hahn na França e Tokuda Sensei no Brasil, nos séculos XX e XXI. Infelizmente construímos monumentos para essas figuras idealizadas, esquecendo sua prática e transmissão.

O Buda Shakyamuni nunca construiu um mosteiro. Deixou-nos o Dharma e o conselho de que o praticássemos com a Sangha. Menos é mais neste caso. Menos instituições, mais prática. Naturalmente as versões locais das Sanghas se organizam em grupos de prática, às vezes com instrutores mais ou menos experientes. E às vezes se constroem centros de prática, onde praticantes podem se tornar alunos e um dia, se for do seu caminho, tornarem-se professores também. Grupos e centros, como os próprios praticantes, devem ser leves, para não sufocar a prática.

Cada praticante é um centro de difusão do Dharma. Sua leveza, compaixão e acolhimento da vida e morte de todos os seres, inclusive de sua própria vida e morte, criam um ambiente de paz, quietude, serenidade e alegria no seu entorno.

Um grande abraço para todos
Gasshô
Alcio Soho